sexta-feira, 11 de maio de 2007

Brasil - Grande projeto: quem paga conta de chegada?

Lúcio Flávio Pinto *

Adital - Quando a hidrelétrica de Tucuruí começou a ser construída, em 1975, ainda não havia a exigência de estudo prévio de impacto ambiental, o EIA-Rima, que emergiu no mundo jurídico com a leva ecológica a partir de 1981. A Eletronorte apenas encomendou um levantamento, realizado pelo pesquisador americano Robert Goodland, autor (juntamente com Howard Irvin), de um livro de impacto na época: "Amazônia - Do inferno verde ao deserto vermelho" (censurado, na edição em português, por um mestre da USP, Mário Guimarães Ferri, que lhe expurgou o capítulo sobre os índios). O trabalho de Goodland inventariou situações e problemas e fez recomendações. Serviria de um bom termo de referência, mas a Eletronorte preferiu continuar pela superfície.

Trinta anos depois, a Cargill construiu um terminal de grãos ao lado do porto de Santarém, destinado a ter maior movimentação de carga do que o seu vizinho e antecessor, o porto de carga geral da CDP. Depois de muito puxa-encolhe e jogo de cena, a multinacional americana concluiu e pôs em funcionamento o seu porto sem fazer o EIA-Rima.

Ela e seus licenciadores ambientais de então, na Sectam (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente) partiam do pressuposto de que o impacto já fora causado pelo porto de carga geral, do qual o píer da Cargill era praticamente uma extensão (embora de maior vulto). Os militantes ecológicos, fazendo exigências especiosas, queriam, na verdade, sabotar o empreendimento. Ou medir forças num cabo-de-guerra.

Mesmo que tivessem razão, os "desenvolvimentista s" tinham que cumprir a lei. Por falta dela, no início da década de 70, a Eletronorte pôde comandar uma das obras de maior impacto ambiental na Amazônia sem uma forma de avaliação sobre a sua presença compatível com a grandeza da intervenção que faria na natureza. Se fosse um pouco mais sensível, a empresa teria compensado essa lacuna legal com antecipação espontânea do que só viria a ser obrigatório depois. Bastava aproveitar as boas e más experiências no trato com o ambiente, como em Assuã, no Nilo (Egito), ou em Boneville, no Colúmbia (EUA).

Mas no caso da Cargill a exigência do EIA-Rima era clara, categórica. Mesmo que fosse para o cumprimento de uma formalidade, a empresa tinha que produzi-lo e se submeter à sua avaliação. Mas apostou no fato consumado e foi atropelando tudo. Agora, obrigada pela justiça federal, terá que voltar atrás e cumprir o dever. Mesmo que seja apenas para inglês ver, a decisão da justiça foi correta sob esta dimensão do litígio que lhe foi submetido. Mas também por outra perspectiva: determinou o restabelecimento das atividades do terminal.

O melhor seria que inviabilizasse tudo, punindo o evidente infrator, renitente e desrespeitoso, com a pena maior? Para responder sim, seria necessário começar a refazer muita coisa (ou quase tudo) com as mesmas réguas e compassos aplicados à Cargill. Um terminal de grãos fincado à beira de um rio plenamente navegável, situado em posição comercial estratégica, e com raio de influência sobre uma grande maciço florestal, é uma bomba de efeito retardado sobre toda essa área. Equivale a um ponto de compra de carvão vegetal, como os que surgiram e se multiplicaram em Carajás, incrementando a expansão dos fazedores de deserto, a praga mais ativa na expansão da sociedade humana sobre o mundo vegetal.

Um empreendimento econômico de impacto surge numa fronteira sob uma auréola positiva: vai gerar tantos empregos, criar tantas demandas, desencadear tantos efeitos. Os aspectos positivos, muitos deles reais e significativos, são inflados e conquistam convencimento social mais em função dos recursos de marketing e propaganda da empresa do que da qualidade intrínseca (e extrínseca) do seu projeto.

Mas os aspectos negativos, quase tão ou mais numerosos, sempre são subestimados, quando não simplesmente sonegados do conhecimento da opinião pública. Ela só se dá conta do saldo do balanço quando a conta lhe é apresentada. Aí o "estado da coisa" é irreversível. Cabe aos poetas lamentar a fraude e a perda. Carlos Drummond de Andrade fez isso por todos - passados, presentes e futuros - na sua Itabira mineira.

Mas se o jogo fosse completamente limpo, com todos os dados postos à mesa, e houvesse a franquia decisória, a população abriria as alas da complacência para esses "grandes projetos"? Bem informada sobre os prós e os contras, estaria em coro uníssono com a empresa? Ou teria preferido continuar menos desenvolvida e menos miserável como estava antes, dilacerada por contrastes brutais, que só se vão encontrar no infinito?

Não pretendo dar qualquer resposta em nome dos demais. No caso do porto de Santarém, porém, gostaria de lembrar um episódio que contei recentemente na "Memória de Santarém", seção parecida à "Memória do Cotidiano", que publico quinzenalmente em O Estado do Tapajós, o jornal do Miguel Oliveira.

No dia 1º de janeiro de 1972 a construtora Cobrasil começou a construção do cais de Santarém, que substituiria o antigo trapiche, uma estrutura simples de madeira, com reduzida capacidade de carga. Era o início da materialização de um antigo sonho da população, mas nem todos tinham motivos para comemorar, como registrou o professor Antônio Pereira, em artigo que saiu ainda em janeiro em O Jornal de Santarém, a publicação periódica de maior duração no município.

Esse documento pode servir de motivo para uma reflexão dos santarenos sobre o sentido e o valor do tal do desenvolvimento. Ressalta um custo desse processo que raramente é considerado e avaliado. Diz o artigo no seu trecho mais significativo:

"Domingo último, o sr. José Esteves Dias (Cazuzinha), ex-proprietário do pitoresco recanto carinhosamente denominado ‘Ponta do Salé’, desapropriada para a construção da grande obra, reuniu seus amigos e familiares para, pela última vez, usufruírem a reconfortante paz e tranqüilidade oferecida pelo ‘Mangueirão’. Mas, apesar das excepcionais condições oferecidas pela ensolarada manhã, da acolhedora sombra da frondosa e secular mangueira que emprestou o nome à aprazível vivenda, das cristalinas águas que se espreguiçavam na forma de ondas, na alvura das areias acariciantes; apesar ainda dos estímulos oferecidos pelas bebidas e tira-gostos, a alegria não era completa, pois todos tinham presente no pensamento, se não a tristeza, mas a certeza de que era a última vez que ali se reuniriam para uma confraternizaçã o ou um fim de semana.

Em breve, o ‘Salé’, a ‘Vera Paz’ e a velha ‘Caieira’, tradicionais recantos cuja beleza foi cantada em prosa e verso, desaparecerão do cenário mocorongo para dar lugar ao majestoso cais, por onde se escoarão nossa matéria prima e os produtos manufaturados das indústrias que também aqui surgirão".

A releitura da cena me encheu de emoção. Minha memória santarena voltou a percorrer aquela paisagem maravilhosa, acessível a um rápido deslocamento da cidade, a pé, sempre pisando na areia alva e fofa da praia, que nos rejuvenescia e alegrava. Tudo isso desapareceu com a construção do porto e, logo em seguida, do novo aeroporto.

Claro que ambas as obras tinham que ser feitas. Mas precisavam ser feitas daquela maneira, ignorando a paisagem, atropelando a história do povo, acabando com suas práticas seculares, vedando-lhes o melhor que a natureza lhes oferecia, fazendo-o ignorar o que é viver na Amazônia (que está cada vez mais sem identidade ambiental)? Sempre "desenvolver" significará privar o que se tinha em troca do que virá (se vier e se for melhor)?

Nunca conseguimos uma resposta satisfatória para esse dilema, que realmente existe e é complexo, por causa da prática do fato consumado, pela vontade de quem, tendo mais, pode mais. E faz e acontece.

Portanto, quando por nada, pela recolocação desse dilema, deve-se impor o EIA-Rima à Cargill e fiscalizá-la muito bem para que não se limite a cumprir uma formalidade. Tem que prestar contas pelo que não fez de bom e pelo que fez de ruim, deste lado da conta talvez fazendo mais do que do outro lado. Infelizmente - e mais uma vez.

* Jornalista

Fonte: www.adital.com. br

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